25 anos de dor

Sabe, eu sempre fui uma criança extrovertida. Dessas que se perdiam de propósito em mercado porque adorava ficar conversando com seguranças enquanto a mãe fazia compras. Ia com todo mundo, fazia amigos por onde passava.

Expansiva, falante e sorridente, vivia tocando as campainhas dos vizinhos pra vender meus desenhos ou meus sucos ruins (empreendedora desde cedo).

Infelizmente, isso foi usado contra mim desde cedo demais.

Eu tinha uns 8/9 anos. Estava assistindo o jogo de vôlei dos meninos mais velhos do quarteirão. Um dos meninos que vinha de fora veio falar comigo, dizendo que toda menina que queria ficar pra assistir, tinha que deixar ele fazer um carinho nas partes. Me convenceu com chantagens e histórias de que aquilo não era errado e que todo mundo fazia, mencionou minhas amigas da rua que já tinham deixado ele fazer isso com elas.

Sentamos perto, numa mureta de um terreno baldio, em frente ao jogo, em plena luz do dia. Eu lembro da sensação de nojo e de suar frio ao sentir ele me tocar. Lembro de flashes dos dedos sujos de graxa de bicicleta, sinto vontade de vomitar ainda hoje, 25 anos depois.

Aquilo me quebrou por dentro de tantas formas que eu escreveria um livro todo e ainda não seria capaz de descrever. Mas em resumo, o que eu mais senti foi culpa. Senti medo. Senti que eu não merecia amor de ninguém, que eu era um ser humano com defeito.

Eu me fechei por completo, não queria mais sair ou ir pra rua brincar. Não queria ver ninguém que não fosse no espaço controlado da escola ou da minha família. E isso foi atribuído à uma “fase” antissocial minha. Ninguém nunca me perguntou se havia acontecido algo. Eu não sentia segurança para falar com ninguém sobre isso, tinha vergonha (acreditem, isso viveu comigo até o passar dos 30, e veio à tona numa sessão de terapia em que eu chorei por 45minutos ininterruptos).

Fui dar meu primeiro beijo com quase 13 anos, e lembro claramente de ter pensado que só ia fazer isso “porque todo mundo estava fazendo” e eu não podia ser a esquisita da turma. Sinto até hoje o arrepio na espinha de medo que senti de que o garoto tentasse algo mais que um beijo. Mas eu dei sorte, beijei um cara que sempre me tratou muito bem e ficamos de namorico leve por uns meses.

Só que eu tinha PAVOR de contato físico, e nunca “me liguei” porquê. Daí pra frente, vivia namorando (sou romântica incurável) todos os crushes que encontrava pelo caminho, mas terminava sempre que algum tentava forçar a barra pro sexo.

E o que pra mim era autoproteção da minha vontade, ao ver dos outros foi me fazer de piada: ouvir desde sempre dos familiares e amigos que eu tinha o dedo podre, que não dava certo com ninguém, que não parava com namorado algum. Óbvio, isso me fechou ainda mais.

Eu só queria ir pra longe de tudo e de todos, fugir dos meus próprios fantasmas e começar de novo em um lugar bem longe. Mas meus pais não tinham condições de bancar um intercâmbio.

Foi então que canalizei tudo isso e estudei na força do ódio pra ter um histórico escolar digno de bolsa de estudos.

A automutilação também deu as caras nessa época. Consegui mudar um pouco o foco dela e convenci meus pais de ter alguns piercings e duas tatuagens pequenas antes dos 16. Era minha forma de me punir e de me lembrar inconscientemente do passado.

Se eu aproveitei o colegial? Tive meus momentos. Mas nunca perdi o foco.

E assim fui parar nos Estados Unidos com 16 anos. Fui “adotada” por uma família de pai machista Americano e mulher submissa Mexicana, dona de casa e sem voz. Desnecessário dizer que foi a cereja do bolo dos abusos que minha infância e adolescência foram marcadas e que me rendeu um ano muito sofrido.

Eu me arrependia todos os dias de ter ido pra tão longe, de ter que aturar aquilo em nome da experiência de vida.

Fui julgada, diminuída, estereotipada, comparada e sofri bullying de tantas formas em casa e na escola, que até hoje não sei como consegui sobreviver ao ano todo.

Aliás, sei.

E essa é a parte bonita dessa história, que vale a pena ser contada num próximo texto separadamente (sério, aguardem)!

Enfim.

Esse texto é pra dizer que existem cicatrizes que nunca se fecham. Existem coisas que a gente leva décadas para conseguir falar e tentar se curar.

Que o julgamento alheio ou a falta de acolhimento podem destruir a vida de uma pessoa, e que devemos sempre tomar cuidado com nossas palavras quando falamos do outro: é a ponta do iceberg de uma história que nunca saberemos o todo.

Mas acima de tudo, esse texto é pra me curar. Pra finalmente contar para o mundo o que me assombrou (ainda assombra, mas hoje com menos intensidade) por tantos anos e ressaltar a importância de não se calar, nunca.

Pra me lembrar e lembrar a todas que já passaram por algo parecido que a culpa nunca é da vítima: que eu era só uma criança e que é preciso aprender a se perdoar para seguir em frente.

E, por fim, para desejar que eu seja capaz de ser para os meus o acolhimento que eu não tive.

autor: Amanda Armelin

Bocuda, nerd, tatuada. Cervejeira de carteirinha e louca por cachorros (principalmente bulldogs). Além do sorriso no rosto, mantém paixão absoluta por bacon e sexo.

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